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OS CACIQUES DO AGRONEGÓCIO

Publicado em 11 de Junho de 2019 ás 11:14

Entre os maiores produtores rurais do País, tribos indígenas organizados por uma cooperativa cultivam em mais de 19 mil hectares, mostrando que o agronegócio é uma das principais ferramentas para manter o índio na sua cultura

Quem escolhe a MT-235 para chegar a Sapezal, pode ter uma primeira impressão ruim dos indígenas que habitam essa região. Em dado momento, para seguir transitando na rodovia estadual, é preciso parar o veículo e pagar um pedágio para os índios. O valor varia de R$ 20,00 para veículos de passeio e R$ 50,00 para caminhões. A taxa é justificada como compensação social pelas terras indígenas do Utiariti.

Para os visitantes esporádicos pode parecer um abuso, uma violação do direito de ir e vir, ou mesmo uma exploração dos nativos – o que só reforça o estereótipo negativo do indígena que ‘‘por não gostar de trabalhar, tenta tirar vantagem do homem branco”. Quem vive na região sabe exatamente o propósito dessa cobrança.

O pedágio é uma espécie de “prêmio de consolação”. No final dos anos 90 houve uma grande reunião do chamado “grande povo do Pareci”, envolvendo as etnias indígenas Haliti-Parecis, Nambikwara e Manoki. Os líderes das diferentes tribos decidiram que iriam cultivar suas terras, plantando soja, milho e outras commodities agrícolas em 27 mil hectares. Mesmo sendo donos legítimos de uma área superior a 1,5 milhão de hectares, os índios não tiveram o direito de usar parte dessa terra para plantar.

O Ministério Público Federal (MPF) interveio. Temendo a degradação ambiental e imaginando que os indígenas poderiam acabar sendo aliciados pelos empresários do agronegócio a arrendar suas terras, o órgão impediu os índios de plantar. O procurador da época impediu, dizendo que “o povo não estava preparado”.

Afim de “preparar” os indígenas para ingressar no agronegócio, o Ministério Público propôs a criação do pedágio pelo direto de passagem pelas terras do Utiariti. Os índios recolheriam essa taxa com o propósito de fazer um caixa que financiaria suas lavouras, além de garantir o bem estar social de todos da comunidade indígena. O “Estado”, que em tese é protetor dos indígenas, nesse momento, freou o ímpeto do Povo Pareci. Já o produtor rural, comumente pintado como vilão dos índios, foi determinante para preservação da Nação Parecis.

Os primeiros produtores rurais começaram a migrar para região de Sapezal e Campo Novo dos Parecis nos idos de 1984. Os indígenas contam que, desde o começo, o contato foi amigável. Foram os próprios produtores rurais que ajudaram a demarcar a área indígena, que somente anos depois viria a ser reconhecida como do Governo Federal. Quando a MT-235 foi aberta, houve uma nova parceria entre índios e colonos. Os primeiros pedágios pela passagem das terras indígenas foram cobrados pelos produtores e repassados para as tribos. Quando a rodovia foi pavimentada, em 2004, o acordo foi referendado pelo então governador Blairo Maggi, um dos maiores produtores de Mato Grosso e filho de André Maggi – o homem que abriu Sapezal. “De forma direta ou indireta, o povo Parecis sempre participou da economia brasileira. Primeiro com a poaia [planta que contém emetina, um poderoso estimulante do reflexo do vômito, muito utilizada na medicina européia do século 17], com os índios coletando e vendendo as plantas. Depois, com o ciclo da borracha, que nosso povo participou ativamente. Os Parecis sempre foram agricultores, sempre plantaram. O que está acontecendo agora é o segundo ciclo”, explica Ronaldo Zokezomaiake Paresi, líder indígena e atual presidente da Cooperativa Agropecuária dos Povos Indígenas Haliti-Paresi, Nambikwara e Manoki (Coopihanama).

Mais do que um líder indígena, Ronaldo é um bom exemplo para compreender o povo Pareci em seu atual momento. Seu pai, seu avô e seu bisavô foram caciques. Durante a entrevista que Ronaldo concedeu para a Revista Fator MT, em nenhum momento ele utilizou o termo “homem branco” – deixando claro que a clássica divisão entre “nós e eles” não existe e que a nação indígena dos Parecis vive em plena colaboração com seus vizinhos. Quando jovem, Ronaldo estudou na cidade até o ensino médio e fez cursos técnicos de associativismo, gestão administrativa e financeira. O conhecimento adquirido na cidade levado para dentro da aldeia. “Tudo que estamos fazendo é para dar segurança ao povo. Queremos viver em paz e harmonia, nos desenvolvendo com o que é nosso, sem depender de governo, mantendo nossa cultura como povo, mas sempre buscando o conhecimento”, declarou Ronaldo.

Plantar, e principalmente colher, não era uma ambição dos índios na tentativa de imitar os grandes produtores rurais da região, que fizeram fortuna com o agronegócio. Era uma questão de sobrevivência. Segundo Ronaldo, nos censos realizados pela Funai em 1983, a população indígena era de aproximadamente 300 indivíduos. Hoje são mais 2,2 mil pessoas integrando o povo Parecis. A “nossa gente” (significado de Parecis), havia se multiplicado por sete, enquanto a área para caça, pesca e extração era a mesma. “Com o crescimento nas lavouras na região, muitos índios acabaram saindo das tribos para ir trabalhar nas fazendas. Quem ficava acabava passando fome”, revela o líder Pareci.

No curso técnico de associativismo, Ronaldo encontrou o formato para que seu povo pudesse arrancar da terra o seu sustento. O modelo cooperativista foi a resposta para unir, gerar escala e dar poder de compra e venda para os índios agricultores.

A forma como os índios Parecis se organizam lembra uma cooperativa. Dentro da grande nação existem mais de 50 aldeias, com suas próprias regras e variação de costumes, mas que se reconhecem como sendo um único povo. De forma geral, cada indivíduo da tribo exerce uma função: uns só fazem roça, outro só artesanato, outros só caçam, e há também quem só é chefe. Cada um atua dentro da sua especialidade e tudo que for conquistado é dividido entre todos – muito similar a um sistema cooperativista.

Com o recurso dos primeiros pedágios, os índios foram adquirindo calcário, para corrigir a terra nas áreas abertas, e um pouco de maquinário. Em 2004, começou a mecanização das lavouras, ampliando assim a capacidade de produção e a dimensão das lavouras a cada ano.

Nesses últimos 14 anos a produção agrícola em terras indígenas só ocorreu em função de uma parceria com os produtores rurais da região. Eles forneciam as sementes e os insumos, os índios cultivavam a terra e, no final, os produtores adquiriam a colheita. Essa era a única forma que os índios tinham para conseguir vender o que colhiam. Segundo Ronaldo, o governo federal tem uma compreensão errada do que são as terras indígenas, tratando-as como áreas de preservação. “Dentro das terras indígenas existem áreas de preservação, como as encostas dos rios por exemplo. Mas de forma geral, é terra de domínio indígena, que pode ser plantada”, rebate Ronaldo.

Essa restrição faz com que as áreas indígenas não tenham Cadastro Ambiental Rural (CAR), ou qualquer outro licenciamento ambiental. Ou seja, os índios precisam vender sua produção para outros produtores rurais, ao invés de negociar diretamente com as multinacionais. “Além disso, não podemos plantar sementes transgênicas, por exigência legal. Precisamos plantar soja convencional que usa 3 a 4 vezes mais produtos químicos”, revelou Ronaldo.

Mesmo com todas as adversidades, o Povo Pareci conseguiu se organizar para produzir. Nos 14 anos de parceria com os produtores eles desenvolveram a técnica e adquiriram experiência no cultivo. Com o dinheiro compraram máquinas e equipamentos. Hoje eles possuem 19 mil hectares de área cultivada, dos quais, nove mil ficam no município de Sapezal. Embora 19 mil hectares pareça um número expressivo, a área destinada a lavoura corresponde a 1,7% do total das terras indígenas.

A safra desse ano é a primeira que os índios plantam de forma autônoma, por meio da sua cooperativa. A Coopihanama agrupa 1.671 indígenas de 48 aldeias. Praticamente toda a mão de obra é composta pelo povo Pareci. Há inclusive um índio formado em agronomia.

Nessa safra a cooperativa cultivou milho, soja, girassol e feijão azuki – de cor vermelha, especialmente apreciado pelo mercado asiático. Os índios também começaram a plantar algodão, a principal commoditie de Sapezal e um dos produtos do agronegócio que mais geram renda. Há aproximadamente 250 anos índios Parecis trocavam algodão e redes com desbravadores por ferramentas de aço. Hoje a história se reedita em um novo nível.

Um dos destaques da produção indígena por meio dessa cooperativa foi a colheita de 2,2 mil hectares de soja convencional com tratamento biológico das sementes – o que reduz em 95% o uso de agrotóxicos. A festa da colheita, realizada em fevereiro de 2019, contou com a presença da ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina, e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles – além do governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, e outras lideranças políticas. “Esse projeto não é mais apenas dos Parecis, mas do Governo Federal. E que sirva de modelo para outras comunidades que queiram plantar, trabalhar com turismo ou qualquer outra atividade que gere renda para o nosso povo”, discursou Ronaldo em frente das autoridades.

O que torna o projeto dos Parecis um modelo de desenvolvimento nacional não é apenas o fato de ser o primeiro do gênero. Pesa na balança a forma como ele foi construído. Os indígenas não pegaram simplesmente qualquer área, atearam fogo e começaram a plantar sobre as cinzas. Existe um planejamento, um pensamento sobre toda a área que pertence aos Parecis.

É como se os índios olhassem para seus 1,5 milhão de hectares e enxergassem um país. Nesse território eles estipularam quais são as áreas que podem ser mecanizadas, quais serão destinadas à pecuária, à agricultura, o que ficará intacto, o que pode ser utilizado como potencial turístico e os locais considerados “sagrados” para o povo Pareci – utilizados em seus rituais. Essa organização do que os índios querem fazer com suas terras é chamado de Plano de Gestão Territorial. O documento vem sendo ajustado e discutido com órgãos governamentais, como Funai e Ibama para que no fim leve a regularização das áreas indígenas e dê condições legais do povo Parecis produzir.

Segundo Ronaldo a maior parte do território continuará preservada. “Não queremos ser nenhuma Amaggi da vida, ampliando as áreas de lavoura continuamente. O foco é ter um sistema econômico próprio, devidamente legalizado”, explica.

Atualmente os 19 mil hectares cultivados não são uma área só, continua. As lavouras ocupam blocos nas áreas de domínio das diferentes tribos. O efeito é quase o oposto dos corredores ecológicos. Na produção agrícola convencional, abre-se a área para lavoura deixando corredores interligados de mata para preservação da fauna. O que os índios estão fazendo é abrir pequenas porções para agricultura em uma gigantesca área de floresta.

O plano também pensa no bem estar da população indígena. As áreas de lavoura nunca ficam muito próximas de nascentes ou das aldeias, para evitar a contaminação por agrotóxicos. As áreas de floresta que naturalmente contém muitas plantas frutíferas também não são usadas para agricultura, preservando a fauna e a própria tradição coletora das tribos. “Dentro da terra tem um povo que vive, que precisa se alimentar e desenvolver. A cultura europeia já está forte nos povos indígenas. Existe uma demanda por saúde, educação, uma vida social mais ativa. Temos terras e habilidade para produzir. A forma que temos de preservar nossa cultura é não deixar o índio morrer de desnutrição ou sair da sua aldeia em busca de outras formas de ganhar a vida. Produzir é a resposta”, declarou.

Para conseguir o direito de produzir sobre o que é seu, é crucial que os Parecis consigam aprovar o Plano de Gestão Territorial. E o caminho para isso é a política. Segundo Ronaldo, existe um grupo de 15 pessoas que faz parte da comissão de lideranças que busca os meios de regularizar a situação do povo indígena para que possam trabalhar. São politicamente ativos, mantendo contato com lideranças como os deputados federais Nelson Barbudo, José Medeiros e o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Alceu Moreira (RS). “Busco fazer um trabalho não só para meu povo, mas para a região, inserindo, nós indígenas, dentro do meio social. Por isso conversamos com todos. Nosso partido são os agricultores. O que nos diferencia dos produtores é apenas nossa cultura. As necessidades, dos índios e do setor produtivo, são as mesmas”, argumenta Ronaldo.

Assim como a agricultura foi a resposta para o Mato Grosso se tornar um Estado rico, ela também é a forma de os indígenas alcançarem a sua liberdade.

PLANTAR É SÓ O COMEÇO

A lavoura é apenas o ponto de partida. Organizados em cooperativa, os Parecis querem produzir e crescer até ter o seu próprio sistema de crédito. Sim, o povo Pareci quer ter o seu próprio banco.

Dessa forma, explica Ronaldo, os indígenas passam a ter autonomia para subsidiar outros projetos, como por exemplo a piscicultura, pecuária de pequeno porte ou mesmo o turismo. Afinal, não existe uma “linha de crédito” para os indígenas.

Com tantos dispositivos “urbanos”, é possível que alguém se questione: “mas eles vão continuar sendo índios?”

A resposta para essa pergunta que só reforça o estereótipo é: eles vão continuar sendo Parecis.

Desde sempre os índios Parecis foram envolvidos com a economia e o progresso. Seja com a poaia que abastecia os boticários portugueses ou com a borracha que fez os carros americanos da Ford rodarem, os Parecis sempre interagiram com as sociedades sem perder sua cultura. Em 1907, quando Marechal Candido Rondon começou a instalar as linhas de telégrafo, ele contou com a ajuda dos índios Parecis e, no final, dois foram treinados para operar como telegrafistas – algo que um cosmopolita morador do Rio de Janeiro, nascido e criado na cidade, dificilmente saberia fazer.

Por isso o progresso econômico e a integração com a sociedade “branca” é algo tão cultural para os Parecis como o fato das suas mulheres não varrerem a casa ou escovarem os cabelos enquanto os homens estão na caçada. À sua maneira, os Parecis interagem com as demais sociedades, mas permanecem como um povo de identidade cultural própria.

Um bom exemplo disso é o produto que os índios pretendem financiar pela cooperativa. Chama-se “Supermultimistura”. Esse composto alimentar combina ingredientes do consumo cotidiano, como batata e abóbora com essências de ervas e raízes medicinais conhecidas pela cultura indígena. Conforme Ronaldo, a ambição é desenvolver a supermultimistura em escala, com os devidos registros de produção, abastecendo as tribos indígenas, mas também comercializando para a sociedade em geral – especialmente em regiões que ainda sofrem com a fome e a desnutrição.

Dados do Município

SAPEZAL

Sapezal está localizada no interior de Mato Grosso, distante 509 km da capital Cuiabá, região Centro-Oeste. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2020, sua população é estimada em 26.688 habitantes.

A cidade possui a 11ª maior economia do estado, com PIB (Produto Interno Bruto) dos Municípios de R$ 2.516.823.700 (aproximadamente R$ 2,51 bilhões).

O município é um dos principais produtores de algodão do estado. Dados de 2018 do IBGE apontam para uma área plantada de 168,2 mil hectares (ha), com 756,9 mil toneladas colhidas. A soja também se destaca, com plantio em 355 mil ha e uma produção superior a 1,23 milhão de toneladas. Além destas, outras culturas também se destacam na produção de comodities, como milho, girassol, arroz e feijão.

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